«Há quatro anos, num belo domingo 24 de Fevereiro de 2002, encontrava-me numa das Igrejas do Lobito a meditar, momentos antes da Missa Dominical das 10h00. Nesse instante, entra uma senhora amiga, na casa dos seus 50 anos, toca-me no ombro esquerdo e diz «sekulu wafa, kalye wendi k'ondalatu! v'ukanoli o café k'imbo lyamale!» (1).
Confesso que entendi o que disse, mas não compreendi e nem consegui fazer o devido enquadramento. Intrigado, tentei concentrar-me na missa que estava prestes a começar.
Quando terminou a missa, saí da Igreja e fiquei lá fora a conversar com amigos. Eis que aparece o nosso pároco que se junta ao grupo e participa da conversa. Dada a nossa proximidade, seguimos juntos para almoçar.
Durante o almoço vieram-me as frases da senhora e disse-as ao padre, na esperança que ele me ajudasse a fazer o devido enquadramento. Para meu espanto, jovem da casa dos vinte anos, aquelas palavras tinham uma verdade histórica que eu desconhecia completamente.
No rescaldo da guerra imediatamente a seguir a Independência, entre os anos de 1976 a 1978, houve uma brutal escassez de alimentos e paralização dos campos de algodão e café do norte de Angola.
Para fazer face a esse desafio, o governo de Angola reeditou a guerra do Kwata-Kwata (2) nas terras do planalto e sul de Angola (3) afim de obter trabalhadores agrícolas indispensáveis para revitalização da agricultura nas roças do norte.
Se com a independência, os camponêses do planalto e sul de Angola puderam sonhar com o fim do seu recrutamento forçado para aquelas roças, a sua reedição por um governo independente foi um golpe duríssimo na sua ilusória liberdade.
O líder da UNITA, Jonas Savimbi, agastado com a fraqueza e quase exaustão das forças que conseguiram sobreviver à retira das cidades, em direcção as matas do leste (Jamba), onde se reorganizará a luta de resistência, aproveitará esse facto mais a presença dos cubanos para moblizar aqueles camponêses e relativos à sua causa.
O aproveitamento político desse facto e o apelo à resistência a guerra do Kwata-Kwata e a invasão cubana atraiu para as matas muita gente farta da opressão e brutalidade das roças.
Conta a história que foi assim que Savimbi conseguiu pôr fim a guerra do Kwata-Kwata. É bem conhecida a máxima Umbundu que Savimbi usava com frequência «ise okufa, etombo livala» (4).
Talvez isso explica, em parte, porque pessoas da minha geração naturais das zonas do planalto e sul de Angola tenham crescido em meios onde os adultos nutriam (e nutrem) uma grande admiração e respeito, quando não devoção, pelo mais velho (Savimbi), que consideravam seu libertador tanto da opressão colonial quanto da opressão do novo governo, malgrado todos os dizeres verdadeiros ou não das atrocidades do mais velho.
Mas para os nascidos depois da independência continua a existir muitas coisas difíceis de compreender, hoje, porque a história foi-lhes negada por muito tempo. Os que a viveram preferem calar, quando não a contam com muita amargura, sendo difícil distinguir o facto da sua recriação. Dessa forma aprendi mais um pouquinho da nossa difícil e complicada história política.
(1) Morreu o mais velho, agora ireis apanhar café em terras do norte como contratados.
(2) Guerra do Kwata-Kwata: literalmente, guerra do apanha-apanha. Foi desencadeada pelas autoridades coloniais para apanhar camponêses e enviá-los às roças, sobretudo do norte de Angola. As famosas levas de contratados Ovimbundu ou Bailundo.
(3) Planalto e Sul de Angola: pessoalmente, não gosto de usar essas expressões, mas servem para identificar o antigo corredor do Planalto de Benguela ou zonas de povoamento Ovimbundu; assim como, as zonas do norte, identificam as de povoamento Kimbundu mais Kikongo (roças do Uige)
(4) Prefiro antes a morte, do que a escravatura. É um forte apelo a resistência por justa causa: manter a dignidade e a honra do convento.Mas não se compreende plenamente sem a sua complementar: «na floresta, a árvore que não obedece ao vento quebra». Isto é, quando a resistência não é possível, a sabedoria aconselha obediência para sobreviver e contar a história.»
Carlos Pacatolo
In upindi.blogspot.com
Carlos Pacatolo
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2 comentários:
Começo a adquirir o hábito de vir aqui espreitar o blog de Orlando Castro...
E até não é mau hábito confessemos.
Desta vez comento apenas a necessidade urgente de todas estas pequenas histórias serem escritas.
Oxalá o projecto Aluka consiga que a futura Comissão Nacional de História vá em frente e que dentro de poucos anos, haja um acervo considerável de documentos, relatos e entrevistas sobre o que foram os últimos 50 anos da História de Angola.
Acredito que jovens como Carlos Patacolo consigam que no futuro os nossos filhos e netos saibam o que realmente se passou.
É importante que assim seja, sem interferência das "historietas" e dos "historiadores" oficiais, e sem interferência das dores porque todos passámos.
Que a nossa História registe a emoção e a realidade e esqueça a raiva, o despeito e a dor.
Vamos a ver... Que os Patacolos da nossa Terra o consigam!
Também acho (é claro que sou suspeito) um bom hábito visitar este espaço onde a liberdade dos outros termina onde começa a minha e, obviamente, onde termina a minha e começa a dos outros.
Kanadandu
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