Os chefes de
Estado de Portugal e Cabo Verde mostraram-se hoje preocupados com a degradação
da situação económica e social na Guiné-Bissau, reafirmando a sua oposição a
qualquer solução que legitime golpes de Estado.
Que Jorge
Carlos Fonseca, que apenas está no cargo há nove meses, só agora tenha acordado,
ainda vá que não vá. Mas Cavaco Silva, que foi primeiro-ministro de 6 de Novembro de 1985 a 28 de Outubro de
1995, que venceu as eleições presidenciais de 22 de Janeiro de 2006 e foi reeleito
a 23 de Janeiro de 2011, manifesta assim um colossal acto de hipocrisia.
Pelos
vistos, tanto Jorge Carlos Fonseca como
Cavaco Silva só agora terão reparado que na Guiné-Bissau nenhum candidato,
nenhum presidente, acabou o seu mandato e que em 17 anos o país já teve sete
presidentes.
Embora não
tenham sido originais, os autores do mais recente (outros haverá, infelizmente)
golpe de Estado parecem ser os bodes expiatórios ideais para a ONU, CPLP, Cabo
Verde, Angola e Portugal. “Nino” Vieira e tantos outros dirigentes não foram
assassinados agora, mas só agora é que a comunidade internacional deu fé de que
isso tinha acontecido.
Dir-se-á que
mais vale tarde do que nunca. Talvez. Pois é. Foi necessário os militares
guineenses dizerem que não estão para ser protectorado de Angola para que,
humilhada no seu sentimento de potência regional e dona de Portugal, Luanda
puxasse dos galões e desse ordens ao reino português para papaguear uma série
de asneiras.
Enquanto os
militares guineenses foram fazendo o jogo do regime angolano, mesmo matando
presidentes, candidatos, e chefes militares, tudo esteve bem. Quando resolveram
pôr em questão o poder de Angola… estragaram tudo.
Luanda
mandou, Portugal pôs-se de cócoras (posição também ela nada original) e a CPLP
disse que sim ao dono do reino angolano. Juntaram-se e lá foram para Nova
Iorque dizer que só agora é que descobriram que os direitos civis, políticos e
humanitários estavam a ser violados.
A declaração
da ONU, que vem ao encontro do que tem vindo a ser pedido por várias
organizações internacionais e Estados que condenaram o golpe, entre as quais a
CPLP e o Governo português por ordem de Angola, refere os compromissos que
exigem a reposição da ordem no país.
Reposição da
ordem no país? Pois é. Agora é preciso repor a ordem. Quando o
primeiro-presidente da Guiné-Bissau, Luís Cabral, foi deposto por um golpe de
Estado liderado por “Nino” Vieira, em 1980, onde andavam todos estes arautos da
legalidade e da reposição da ordem?
Um ano antes
de morrer, em 9 de Julho de 2008, Luís de Almeida Cabral considerou que a
existência de tráfico de droga no seu país natal constitui uma
"vergonha", apelando às autoridades de Bissau para combaterem o
fenómeno: "É uma situação muito má. Desejo que as autoridades e o povo
guineenses possam combater esta vergonha que não traz nada de bom".
Pois é. Mas
nessa altura, também nessa altura, tudo ficou na mesma. E ficou assim, calculo,
porque ainda não existiam a ONU, a CPLP, Portugal, Angola ou Cavaco Silva.
Alguém ainda
se lembra que, em 18 de Maio de 2009, o
Procurador-Geral da República da Guiné-Bissau, Luís Manuel Cabral, disse
que a instituição estava sem dinheiro para continuar o processo de investigação
aos assassínios do Presidente 'Nino' Vieira e do general Tagmé Na Waié?
Será que
Kumba Ialá tinha razão quando, em 17 de Junho de 2009, acusou o PAIGC de ser
responsável pela morte de Amílcar Cabral,
"Nino" Vieira, Tagmé Na Waié, Hélder Proença e Baciro Dabó?
"Carlos
Gomes Júnior tem que responder no Tribunal Penal Internacional pelas
atrocidades que está a cometer", no país, defendeu nesse dia Kumba Ialá,
acrescentando que "há pessoas a quererem vender a Guiné-Bissau", mas
esclarecendo que "serão responsáveis pelas turbulências que terão lugar no
futuro".
Cavaco Silva
e companhia estão preocupados com Carlos Gomes Júnior, exigindo o regresso à
normalidade institucional. Quando os EUA, por exemplo, avisaram as autoridades
da Guiné-Bissau que o novo chefe das Forças Armadas não poderia estar implicado
nos acontecimentos de 1 de Abril (2010), como era o caso do major-general
António Indjai, o que fez Gomes Júnior?
Escolheu (e
o presidente Balam Bacai Sanhá aceitou) para chefiar as Forças Armadas, nem
mais nem menos do que... António Indjai.
Recorde-se
que Indjai foi o protagonista dos acontecimentos militares de 1 de Abril e que
chegou (embora depois tenha pedido desculpa) a ameaçar de morte o
primeiro-ministro, Carlos Gomes Júnior.
Cavaco Silva
já condenara (13 de Abril) "veementemente o golpe de Estado na
Guiné-Bissau”, apelando a uma posição "firme e determinada" da
comunidade internacional. Depois passou a dormir descansado e a fazer as contas
para saber se a sua reforma dá para pagar as despesas.
O discurso
de Cavaco Silva para felicitar Carlos Gomes Júnior como novo presidente da
Guiné-Bissau já estava escrito. Se calhar teria apenas alterar o nome. Aliás o
texto é sempre o mesmo. Primeiro foi o de “Nino” Vieira, depois o de Malam
Bacai Sanhá.
"Tendo
tomado conhecimento das suas novas funções como presidente da República da
Guiné-Bissau, é com satisfação que endereço a Vossa Excelência, em nome do Povo
português e em meu próprio, as mais sinceras felicitações e votos de sucesso no
desempenho das altas funções que, de forma tão expressiva, foi chamado a
desempenhar, pelo Povo irmão da Guiné-Bissau", dirá certamente a mensagem
enviada de Belém a quem vier a ser o dono da Guiné-Bissau.
Neste
parágrafo até não foi necessário acrescentar nada. O Vossa Excelência que
serviu para "Nino" dá para qualquer um, seja Carlos Gomes Júnior,
Kumba Ialá ou António Indjai.
Cavaco Silva
sabe (ou não fosse ele um pobre reformado) que civismo e democracia não se
conjugam com a barriga vazia, mas esse é um problema dos outros...
"Estou
seguro de que o mandato de Vossa Excelência será pautado pela defesa do
processo de reforma e consolidação das instituições da Guiné-Bissau, que conta
com o firme apoio de Portugal e que constitui uma condição indispensável para
assegurar o futuro de paz e de desenvolvimento económico e social a que o Povo
da Guiné-Bissau tem direito", escreveu, escreve e escreverá o Presidente
português, seja qual for o dono do país.
O Chefe de
Estado português irá de novo, sem pinta de originalidade, sublinhar a
importância que atribui "aos laços históricos de profunda amizade que unem
os dois países e ao reforço continuado da cooperação entre Portugal e a
Guiné-Bissau, quer no plano bilateral, quer no quadro multilateral, muito em
particular no âmbito da CPLP (Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa)".
Pois.
Portugal não está (ou pelo menos não parece estar) interessado em ensinar os
guineenses a pescar. Vai, no entanto, mandando para lá umas sardinhas. E mesmo
estas começam a fazer falta em Portugal, país onde os cidadãos de segunda – a
esmagadora maioria – já incluem o farelo na sua dieta alimentar.
"Reiterando-lhe
as minhas felicitações, peço-lhe que aceite os votos que formulo pelo bem-estar
pessoal de Vossa Excelência assim como pela prosperidade e progresso do Povo irmão
da Guiné-Bissau", finalizará o Presidente português.
É isso aí.
Votos de prosperidade e progresso de um Povo irmão que continua a ser gerado
com fome, a nascer com fome e a morrer pouco depois... com fome (dois em cada
três guineenses vivem na pobreza absoluta e uma em cada quatro crianças morre
antes dos cinco anos de idade).
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