Estava
tentado a escrever sobre o que, hoje, disse o ex-Presidente da República portuguesa,
Mário Soares, para quem a actual crise na Europa seria resolvida se o Banco
Central Europeu fabricasse moeda.
E estava eu
à voltas com esta opinião quando, de repente, batem à minha consciência. “Será
chuva? Será gente? Gente não é certamente e a chuva não bate assim…”
Pois não.
Quem a sim batia era a memória de uma entrevista a Mário Soares, então ministro
dos Negócios Estrangeiros, sobre a descolonização em África, publicada no nº 34
de 1974 da “Der Spiegel”:
Sr. Ministro, o Governo Provisório está em
vias de conceder a independência às colónias da Guiné-Bissau, Angola e
Moçambique. Há portugueses que se interrogam se este Governo de Transição, que
não foi eleito pelo povo, mas empossado por um golpe militar, tem legitimidade
para tomar uma decisão tão histórica.
MS – Isso nós
perguntámos logo a seguir à revolução de 25 de Abril. Ponderamos se a
descolonização se deveria fazer apenas após eleições regulares. Mas
verificou-se que o problema era candente, que dificuldades e demoras surgiam no
processo. E assim convencemo-nos que precisávamos de nos apressar.
Há
portugueses que julgam que o Sr. se tenha apressado demais – como em tempos os
belgas ao se retirarem do Congo.
MS – Estamos
há 3 meses no governo, e entretanto fizemos contactos e progressos, mas não
creio que tenhamos sido demasiado apressados. Pelo contrário. A situação em
Angola, que nos últimos tempos se tornou explosiva, prova que talvez não
tivéssemos andado suficientemente depressa.
Sobre as
condições de independência o Sr. negoceia exclusivamente com os movimentos de
libertação africanos. Na sua opinião eles são os únicos legítimos
representantes das populações nas colónias?
MS – Bem, se
quisermos fazer a paz – e nós queremos sem demora a paz – temos que falar com
os que nos combatem. Isto não implica uma avaliação política ou ética dos
movimentos de libertação, mas resulta da apreciação pragmática de determinada
situação. E quem nos combate na Guiné? O PAIGC. Assim temos de falar com o
PAIGC. Quem nos combate em Moçambique? A Frelimo. Assim temos de falar com a
Frelimo.
E com quem
pode o Sr. negociar em Angola onde existem vários movimentos rivais?
MS – Em
Angola há dois movimentos de libertação reconhecidos pela OUA – o MPLA e a
FNLA. Assim temos de negociar com ambos. Para avaliar qual dos dois é o mais
representativo do povo é um problema que os Angolanos e as coligações que no
futuro formarão governo terão de resolver mais tarde.
Acredita que
esses movimentos e em particular os ainda discutíveis têm suficiente autoridade
de impor a solução que vai ser negociada.
MS –
Esperamos que sim. Mas o processo de descolonização em Portugal, no formato,
não deverá decorrer de modo muito deferente do da Inglaterra e França.
Na Argélia
havia um movimento de libertação muito forte, como no Quénia e sem dúvida
também na Guiné-Bissau e Moçambique. Mas e em Angola?
MS – Sim, na
verdade em Angola a situação é difícil devido às divisões dentro dos
movimentos. E nós não podemos alterar aí quase nada. Estamos prontos a falar
com cada uma das facções e, dentro das nossas possibilidades, procurar que se
unam. Mas não temos muitas ilusões, as nossas possibilidades de intervir aqui
são muito limitadas.
Se o
processo de descolonização português correr como o inglês ou o francês, na sua
opinião qual será a tendência a seguir - como no Quénia que seguiu a via
capitalista, ou como a Zâmbia que tenta uma espécie de socialismo africano?
MS – Eu
julgo que é sempre perigosa a transposição de modelos estranhos. Mas, de
momento, parece-me que a evolução em Moçambique será semelhante à da Zâmbia.
Noutras regiões poderá haver outras soluções. Quando falei da semelhança do
nosso processo de descolonização com o inglês ou o francês, pensei mais nas
linhas gerais – que nós, como potência colonial, como os ingleses e os
franceses, devíamos negociar com os movimentos fortes a operar nas colónias.
E o que virá
depois das negociações?
MS –
Parece-nos importante que as populações sejam consultadas e que, depois do
domínio português, não lhes seja imposto outro domínio que poderá não ter a
maioria. Gostaríamos que a liberdade da população fosse garantida e assegurada.
Mas temos nós, como antiga potência colonial, autoridade bastante para discutir
isso? A nós parece-nos isso muito problemático. Por outro lado, o PAIGC e a
Frelimo são movimentos de libertação que
em anos de luta renhida pela independência ganharam indiscutível
autoridade. Eles têm chefes muito qualificados e conscientes das
responsabilidades. Com quem mais, a não ser com eles, deveremos negociar?
Sente-se o
novo governo português também responsável por aqueles milhares de africanos
que, por motivos diversos, colaboraram com o anterior regime?
MS –
Certamente que nos sentimos responsáveis por essa parte da população e sobre o
seu destino já se falou por diversas vezes nas conversações. No caso concreto
da Guiné, onde o processo está mais avançado, tencionamos, por exemplo, repatriar
para Portugal os ex-combatentes africanos que o queiram por não se conseguirem
integrar na nova República independente.
Quantas
pessoas são essas?
MS – Sabemos
de cerca de 30 antigos comandos que aos olhos do PAIGC representam um certo
perigo. Para estas pessoas temos de encontrar uma solução qualquer – talvez
integrá-los nas forças armadas portuguesas ou coisa semelhante.
Acredita que
do lado dos movimentos de libertação exista a boa vontade de não exercer
represálias contra os colaboradores africanos do antigo regime?
MS – Sim,
isso foi-me espontaneamente assegurado, mesmo antes de nós termos levantado o
problema. Também nos deram certas garantias, os movimentos de libertação não
são racistas. Eles estão conscientes dos imensos problemas que terão de
enfrentar e não querem comprometer já a sua vida política com crueldades e
actos de vingança.
No entanto,
a “Voz da Frelimo” emissora do movimento para Moçambique tem, nas passadas
semanas, por diversas vezes apelado aos soldados pretos para desertarem das
tropas portuguesas, sob pena de ajuste de contas após a independência.
MS – Uma
guerra, infelizmente não é um jogo de cavalheiros nem um concurso hípico com
regras éticas fixas. Tais excessos verbais e ameaças são lamentáveis, mas
também muito naturais. Na verdade, não sei se essas ameaças foram feitas, mas
considero-as possíveis. Mas até agora tivemos na Guiné e em Moçambique – em
Angola ainda não – uma impressionante onda de confraternização e tudo tem
corrido muito melhor do que seria de esperar depois de 13 anos de guerra.
Muitos
brancos nas colónias portuguesas sentem-se traídos por Lisboa. Com razão?
MS – Se
acreditou nos slogans do antigo regime – que Angola é nossa e sê-lo-á para
sempre, e que não são colónias mas simplesmente províncias ultramarinas – então
terá razão em sentir-se traído. Mas, na realidade, a traição é do regime de
Salazar e Caetano que quiseram fazer esta gente acreditar que seria possível
oferecer resistência ao mundo inteiro e à justiça.
Qual será o
futuro destes brancos desiludidos, se, apesar de tudo, quiserem permanecer em
África?
MS – Se
forem leais para com os novos Estados independentes na cooperação e respeitarem
as suas leis, não têm nada a temer. Na Guiné, por exemplo, o próprio movimento
de libertação exortou-nos a deixar os nossos técnicos, médicos, engenheiros e
agrónomos, porque precisavam deles. É cómico: a extrema esquerda portuguesa exigia
a nossa saída imediata, total e sem condições, mas os próprios movimentos de
libertação não exigiram nada disso.
O que será
dos brancos que não querem ficar em África? Em Moçambique já se iniciou entre
os brancos um grande movimento de fuga.
MS – É
verdade. Mas estou certo que dois anos após a independência e quando as
instituições do País funcionarem razoavelmente, haverá mais portugueses, em
Moçambique, que hoje. Isto é, aliás, um fenómeno geral. O Presidente Kaunda da
Zâmbia disse-me, quando estive em Lusaka: “ Saiba que temos aqui na Zâmbia o
dobro dos ingleses que tínhamos antes da independência”.
E o Sr.
acredita que isso também acontecerá em Moçambique?
MS – Sim.
Primeiro virão muitos para Portugal, porque têm medo, mas depois regressarão.
E em Angola?
MS – Ali
ainda não há muitos que abandonaram o País. Ali generaliza-se entre os brancos
uma atitude perigosa. Precisamos de convencer os brancos, no seu próprio
interesse, que fiquem, mas já não como patrões, como até agora.
Apesar disso
Portugal tem de contar com o regresso de muitos. Como irão resolver o caso?
MS – Isto é
para nós um problema económico muito sério, pois não é apenas o regresso dos
colonos brancos mas também os soldados – cerca de 150.000 a 200.000 homens que
regressam duma assentada. Acrescem ainda os imigrantes que querem regressar
desde que Portugal é livre. O assunto está a ser estudado pelo Ministério da
Economia e Finanças. Temos de criar novos postos de trabalho, mas isso
significa igualmente a reestruturação da totalidade da economia portuguesa, que
vai precisar de se adaptar às sociedades industriais modernas.
Não existem
portanto planos concretos para absorver os retornados?
MS – Há
investigações adiantadas.
Entre os
brancos que não querem regressar a Portugal, tenta-se criar um exército de
mercenários para se opor aos movimentos de libertação. Em Angola, nos últimos
tempos, radicais brancos de direita provocaram confrontos raciais sangrentos.
Pode Lisboa impedir que tais brancos, especialmente em Angola, tomem o poder?
MS – Eu
penso que sim.
Como?
MS – O
exército em Moçambique e em Angola é completamente leal para com os que fizeram
a Revolução de 25 de Abril. E o exército não permitirá que mercenários brancos
ou grupos semelhantes se levantem contra o exército. Tentativas haverá. Em
Moçambique já as houve.
E em Angola
onde vivem mais do dobro dos brancos e um terço menos de pretos que em
Moçambique?
MS – Em
Angola haverá certamente uma série de situações mais ou menos desesperadas e
tensões perigosas entre as raças. Apesar disso, julgo que por ora o exército
pode e fará manter a ordem – a ordem democrática.
Portanto, se
necessário, o exército português fará fogo sobre portugueses brancos?
MS – Ele não
hesitará e não pode hesitar. O exército já mostrou que tem mão forte e quer
manter a ordem a todo o custo.
Apesar do
exército, não se pode excluir a hipótese de os brancos se declararem
independentes, como na Rodésia. Pelo menos Angola podia tentar mesmo economicamente
uma tal solução.
MS – De
princípio, nos primeiros momentos da Revolução tive muito receio que tal
pudesse acontecer. Mas quanto mais o tempo passa, mais difícil se tornará uma
tal tentativa.
Suponhamos,
no entanto, que tal venha a acontecer – reagiria Lisboa como Londres, na
altura, tentando impor um bloqueio económico?
MS – Não
creio que em Angola exista uma solução rodesiana, mas se tal acontecesse
combatê-la-íamos com todas as nossas forças, pois uma tal solução seria para
África e para o Mundo uma aventura inaceitável.
Também se
pensou isso no caso da Rodésia e, no entanto, não se pôde evitar.
MS – Para
nós tal solução é improvável a não ser que tivéssemos um golpe de direita aqui
em Portugal. Nós – este governo democrático – não permitirá que tal solução
rodesiana aconteça em Angola ou Moçambique. Eu repito! Nós combatê-la-emos com
todos os meios ao nosso dispor.
Porquê?
MS – Porque
isso poria em causa todo o nosso processo de descolonização, a nossa
credibilidade, e a nossa boa vontade. E porque com uma tal solução até o
regresso do fascismo poderia ser encaminhado em Portugal.
Do ponto de
vista económico a perda da Guiné e de Moçambique são um alívio para Portugal.
Angola, no entanto, com os seus diamantes, petróleo, café trouxe para Portugal
as tão necessárias divisas. Pode Portugal dar-se ao luxo de perder essa fonte
de divisas?
MS – Todas
estas receitas não compensavam os custos de guerra. Nós gastávamos cerca de 2
biliões de marcos por ano com a guerra. O que pouparmos com o fim da guerra
compensa plenamente a perda dessas divisas, que de qualquer modo, acabavam na
maior parte nos bolsos dos americanos, alemães e ingleses.
Lisboa irá
ajudar no futuro as suas antigas colónias? Concretamente: - Se Moçambique independente resolvesse
impedir o trânsito de mercadorias da Rodésia para Lourenço Marques ou Beira
para exercer pressão política sobre o regime branco de Salisbury, estaria
Portugal disposto a compensar Moçambique pela perda de divisas que tal operação
acarretaria?
MS – Os
nossos meios são escassos, temos de ter em atenção a nossa muito tensa situação
económica. Mas, dentro das nossas possibilidades, ajudaríamos, numa tal
situação.
No seu livro
“Portugal e o Futuro”, o general Spínola propunha uma espécie de comunidade
portuguesa como forma de cooperação futura entre Lisboa e África. Os movimentos
de libertação não deram qualquer importância à ideia. Como serão as futuras
relações entre Lisboa e África?
MS – O
discurso pragmático proferido pelo general Spínola em 27 de Julho sobre o
futuro das colónias está muito distante da concepção do seu livro. Se, algum
dia, uma espécie de comunidade dos países lusófonos se verificar, só na
condição de todos os países serem realmente independentes. E seriam então os
países africanos a dizer até que ponto tal associação poderia ir.
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