Malam Bacai Sanhá pensa que é presidente de uma democracia estabilizada e de um Estado de Direito (Guiné-Bissau). Assim parecem pensar algumas organizações internacionais, caso da CPLP. Mas, infelizmente para todos mas sobretudo para os guineenses, não é assim. O que hoje se passou confirma isso mesmo.
Recordo-me de, no início de Janeiro, o presidente da Guiné-Bissau ter convocado o Governo, o procurador-geral da República e o chefe das Forças Armadas para explicarem a razão pela qual o ex-chefe da Armada, Bubo Na Tchuto, se refugiou na sede da ONU em Bissau.
O contra-almirante Bubo Na Tchuto esteve até hoje refugiado na sede das Nações Unidas em Bissau após entrar no país de forma oficialmente clandestina, vindo da Gâmbia, onde se encontrava exilado desde Agosto de 2008, após ter sido acusado pelo Estado-Maior das Forças Armadas de ser o líder de uma alegada tentativa de golpe de Estado.
O governo da Guiné-Bissau exigiu então à ONU a entrega imediata e incondicional do oficial, invocando a necessidade de este ser apresentado à justiça para ser julgado pelos crimes de que é suspeito: tentativa de golpe de Estado, tentativa de alteração de Estado de Direito e deserção.
A ONU pediu calma ao Executivo guineense, argumentando com a necessidade de se encontrar uma solução pacífica (coisa com a qual a Guiné-Bissau parece não saber conviver) e legal para o caso, mas sempre salvaguardando as normas do direito internacional (outra das regras quase desconhecida em Bissau).
E a calma, sempre precária, durou até hoje.
Tudo isto é, afinal, a reedição de um filme já gasto de tanto ser usado. Vão mudando os protagonistas principais, mas o argumento é sempre o mesmo. Também a assistência (CPLP e companhia) é sempre a mesma.
Recordam-se que o director-geral dos Serviços de Informação do Estado (SIE) da Guiné-Bissau, coronel Antero João Correia, foi detido em Bissau por, ao que parece, se ter recusado a dar cobertura à alegada intentona golpista de 5 de Junho do ano passado?
Recordam-se que a morte de Hélder Proença e Baciro Dabó teria resultado dum tiroteio que se seguiu à resistência demonstrada por eles quando as forças da ordem, alegadamente, pretendiam detê-los pela sua suposta implicação na intentona?
Recordam-se que Kumba Ialá disse que "o senhor primeiro-ministro vai ter de explicar ao povo da Guiné-Bissau quem matou Hélder Proença, Baciro Dabó, Tagmé Na Waié e o general João Bernardo Nino Vieira. Catorze pessoas que morreram durante o seu mandato"?
Recordam-se que na Guiné-Bissau nenhum candidato, nenhum presidente acabou o seu mandato e em 15 anos o país já teve seis presidentes?
A democracia tem destas coisas. Ou se é favor de quem está no poder ou, é claro, vai-se para a choldra. Ou se é a favor ou choca-se com uma bala perdida.
Recordam-se que o coronel Antero João Correia, antigo comandante-geral da Polícia, teria sido detido por ordens do então interino chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, Zamora Induta, depois de se recusar a assinar o comunicado do SIE que anunciava a neutralização da alegada tentativa de golpe de Estado?
Recordam-se que esta recusa teria obrigado os mentores do plano a confiar a assinatura do documento ao director-geral adjunto dos SIE, coronel Samba Djaló, que foi apontado como uma pessoa "muito próxima" (pudera!) de Zamora Induta e seu representante a nível do Ministério do Interior que tutela os SIE?
Ao que parece, tanto os políticos guineenses como os donos do poder na comunidade internacional continuam pouco ou nada preocupados com o facto de os pobres guineenses (a esmagadora maioria) só conhecerem uma forma de deixarem de o ser.
E essa forma é usar, não um enxada, uma colher de pedreiro ou um computador, mas antes uma AK-47. E enquanto assim for...
É que dois em cada três guineenses vivem na pobreza absoluta e uma em cada quatro crianças morre antes dos cinco anos de idade.
A Guiné-Bissau continua a ocupar uma posição de desenvolvimento muito precária no concerto das Nações, com uma evolução relativamente baixa da economia e um crescimento do Produto Interno Bruto fraco.
Além da pobreza absoluta que afecta dois em cada três guineenses, a fome ainda existe na Guiné-Bissau em consequência da conjuntura económica "débil", motivada por uma actividade agrícola de monocultura de caju, principal produto de exportação do país e/ou pelas cíclicas crises político-militares.
Esta situações, aliadas à instabilidade política e institucional, não têm ajudado ao processo de melhoria sustentada das condições de vida das populações guineenses.
A progressão (se é que tal se pode chamar) na educação, em que persiste a desigualdade entre os sexos, com primazia aos rapazes, a morte durante o trabalho de parto por falta de cuidados básicos e a propagação de doenças como o HIV/SIDA, a tuberculose e a malária são, infelizmente, emblemas do seu país.
O aprovisionamento de água potável é fraco, os níveis de saneamento básico e de habitação "decente" são dos piores do mundo.
A esperança de vida à nascença para um guineense é de "apenas" de 45 anos, atendendo à fragilidade humana, sobretudo por causa da fraca cobertura dos serviços sociais.
Será que os dirigentes da Guiné-Bissau, bem como essa coisa que dá pelo nome de CPLP, alguém se lembre que enquanto saboreiam várias refeições por dia, ali ao lado nas ruas há gente que foi gerada com fome, nasceu com fome e morreu com fome?
Será que os dirigentes da Guiné-Bissau, bem como essa coisa que dá pelo nome de CPLP, se lembram que não é possível enganar toda a gente durante todo o tempo?
E, mesmo famintos, ainda sobra força aos guineenses para, ontem como hoje e certamente amanhã, fazerem o que já começa a ser um hábito: puxar o gatilho.
E assim se vai escrevendo a história do princípio daquilo que pode ser o fim da Guiné-Bissau. Realidade que não preocupa todos aqueles que vão continuando a cantar e a rir.
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