O diário portuense “O Primeiro de Janeiro” (PJ), que sexta-feira suspendeu a publicação, iniciou hoje um novo ciclo, "de cara lavada e de cabeça bem erguida", afirma o editorial do novo director, Rui Alas Pereira. Cara lavada? Novo ciclo?
Cara lavada só se for com as lágrimas (de dor e de revolta) daqueles que foram apunhalados pelas costas e, como se isso não bastasse, por gente da mesma profissão.
“O Primeiro de Janeiro”, cujos jornalistas foram despedidos colectivamente na semana passada, está agora a ser feito pelos 10 redactores que anteriormente trabalhavam em exclusivo no “Norte Desportivo” (suplemento do próprio PJ), em sinergia com o diário gratuito “Notícias da Manhã”, de Lisboa, pertencente ao mesmo grupo.
O matutino do Porto, que foi fundado há 140 anos, apresenta um novo grafismo e anuncia a supressão das edições de fim-de-semana, passando estar nas bancas apenas de segunda a sexta-feira.
"De cara lavada e cabeça bem erguida, e com uma equipa de jornalistas profissionais experientes e competentes, prometemos ganhar mais este combate", assegura o novo director no seu editorial.
Não sei como é possível estar de cabeça erguida, mesmo que se veja a coluna pouco erecta, quando se espezinha colegas, quando se alinha no vale tudo, quando se passa por cima de colegas como se de trapos se tratasse.
Rui Alas Pereira promete um Janeiro "mais atraente, mais consentâneo com os tempos modernos e mais forte, com uma reforçada distribuição de mais de 30 mil exemplares".
Tudo isto revela o estado das coisas nas ocidentais praias lusitanas a norte de Marrocos. Mas, para mim, revela igualmente o estado putrefacto a que chegou uma parte dos jornalistas, quais prostitutas a mudar de clientes consoante os euros mostrados.
1 comentário:
Honra forjada
A administração do Primeiro de Janeiro acaba de despedir de forma ilegal mais de 30 jornalistas que compunham os quadros e construíam, diariamente, cada edição daquele matutino feito à custa da persistência.
Num dia, os jornalistas, com salários em atraso (vergonha escondida com convites ao despedimento), escreviam aquelas que – mais tarde viriam a saber – seriam as suas derradeiras peças para a publicação do histórico jornal portuense.
No dia seguinte, eram informados de que estavam despedidos, sem que lhes fosse entregue a carta de despedimento, sem que a lei fosse respeitada, sem que o respeito por profissionais com mais de uma década de dedicação fosse tido em consideração.
Trata-se de mais uma manobra vergonhosa de uma Administração que adoptou a ilegalidade como seu estilo de vida. Ilegalidade praticada por debaixo dos olhos das autoridades, que fingem não ver.
Sentença sem direito a recurso? É a hora do tudo ou nada. É hora de saber quais são os limites da impunidade.
Seria fastidioso enumerar os capítulos da fraude que pauta as estratégias desta Administração. Como exemplos, a contratação de profissionais brasileiras para a área comercial, transformando-as em prostitutas, até que estas percebiam qual a sua verdadeira ‘profissão’.
Não menos célebre (‘célebre’ para quem não fecha os olhos) é caso da fraude do porte-pago, sistema que roubou o Estado, com falsos envios de jornais para receber os benefícios estatais: um funcionário dos Correios procedia a um envio-fantasma de jornais para assinantes-fantasma...
Estes dois estratagemas acabam por transformar este despedimento colectivo da redacção de o Primeiro de Janeiro num simples arranhão de um gato amestrado. Mas este arranhão coloca no desemprego 30 membros de famílias.
As conhecidas dificuldades das empresas são compreensivas, tão compreensiva como a necessidade de encurtar os quadros. Mas o modo como se ‘resolveu’ o problema do mar de dívidas do ‘Janeiro’ foi hediondo: sem respeitar a dignidade de profissionais dedicados, enganando-os com um sarcástico ‘Até para a semana’.
‘Até para a Semana’ é o título de um editorial, no qual a directora do ‘Janeiro’ explica esta “reestruturação”. Foi assim que lhe chamaram: “Restruturação”. No dia do derradeiro número antes da “reestruturação”, falava-se no fim do jornal, enganava-se o proletário honrado, sério e humilde com uma promessa de regresso.
Previa-se uma paragem de um mês. Mas o sarcástico ‘Até para a Semana’ cumpriu-se: uma semana depois, o ‘Janeirinho’ regressa, escrito pela redacção de O Norte Desportivo, toda ela com grande experiência nas áreas Política, Económica e Social.
Ao mesmo tempo que a redacção de um desportivo preenchia páginas de um jornal com sentença de morte, 30 jornalistas enfrentavam o destino da vida, proibidos de entrar nas instalações do jornal a que pertencem e com o qual têm contrato. Um segurança ‘trancava’ as portas da vergonha.
Voltamos ao ‘Até para a Semana’, tentando encontrar no riso um agasalho para a revolta: “São difíceis os dias que atravessamos. Mas é na adversidade que sobressai o carácter dos indivíduos. O nosso jornal é forjado na honra, da defesa dos princípios de liberdade, de cidadania, de serviço para com o público, que tão generosamente nos acompanha. (...) Fazemos falta. Temos o nosso espaço nesta geografia de gente (...) que encara as dificuldades como oportunidades de fazer melhor (...). Quantas vezes nos querem fazer invisíveis. Mas nós existimos”.
“A todos, amigos, colaboradores, assinantes, anunciantes e leitores, que nos têm acompanhado e por nós esperam, um obrigado do tamanho que não cabe nestas linhas.
A todos estendemos as mãos. De todos recebemos abraços. A todos até para a semana”, diz o editorial da FALTA DE VERGONHA.
Quem abraça esta gente? Quem lhes estende a mão? Que amigos? Que existência? Que visibilidade? Que falta fazem? Que generosidade? Que cidadania? Do editorial da vergonha, só uma verdade: honra forjada.
Os profissionais do Norte Desportivo foram chamados a apagar os fogos – eles são experientes nesta matéria, porque desde que este jornal renasceu, foram engolidos pelas chamas.
O Norte Desportivo é um projecto falhado, uma ausência de ideias e de conteúdos, uma máquina de lavar dinheiro, que vive à custa de receitas... inexistentes. Um jornal sem tiragem, sem publicidade, sem leitores. Também, nesta subpublicação, “ilegalidade” é palavra de ordem.
Os jornalistas sem contrato são obrigados a refugiar-se no Leblon – café próximo da redacção – quando os inspectores de trabalho fingem que fazem o seu trabalho. O verbo ‘fingir’ aplica-se porque a lei não é cumprida.
Os profissionais do Norte Desportivos também são vítimas. Têm salários em atraso e estão proibidos de pronunciar certas palavras. Calam no silêncio a ira que sentem, porque a alternativa é o desemprego. Aguardam pela remuneração do seu empenho, desesperam pela constante insensibilidade.
São eles que “na adversidade” terão de fazer sobressair “o carácter dos indivíduos”... O Janeiro, que regressa às bancas com o lema de sempre – “Todos os dias, há 140 anos” – caminha para o fim. Devagar, mas sem recuos.
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