sábado, abril 03, 2010

O português à sombra da mangueira

Eis mais uma reflexão sobre o que aqui escrevi a propósito do facto de, sendo a Guiné-Bissau um membro de pleno e total direito da CPLP, o seu ex, futuro, chefe da Armada, contra-almirante Bubo Na Tchuto, bem como o seu ex-vice e hoje ainda chefe do Estado Maior das Forças Armadas, o general António Indjai, nem uma palavrinha saberem dizer em... português.

Não sei se hoje ainda existe a mangueira, no Bairro de Santa Luzia em Bissau, onde Pier de Carvalho, antigo combatente das Forças Armadas portuguesas na Guiné-Bissau, ensinava a língua portuguesa.

Em Maio de 2008, e na altura já lá iam 18 anos, estava lá como comprovou a Lusa num louvável apontamento jornalístico.

Nesse ano, cerca de cem crianças frequentam o "estabelecimento de ensino", debaixo da árvore de fruto, onde aprendiam ortografia, caligrafia, geometria e ciências.

Em funcionamento desde 1990, a escola do professor Pier era das poucas que ainda ensinavam à moda antiga, como na "época colonial". Está visto que nem Bubo Na Tchuto nem António Indjai por lá passaram. É que o kalashnikovês era ensinado noutras paragens, debaixo de outras árvores.

O velho professor gostava do seu trabalho, mas lamentava que as crianças "hoje em dia não falem o português".

"Querem falar o francês ou o inglês, o português é que não gostam de falar, talvez por complexo de errar. Mas aqui sabem que têm que tentar falar o português", sublinhava o professor.

Pier de Carvalho culpava os pais das crianças que "não gostam de falar o português em casa" e o ensino oficial do país pelo nível da língua de Camões na Guiné-Bissau.

"Qualquer dia ainda será difícil encontrar um jovem guineense que saiba falar o português correctamente", disse. Provavelmente, entre outros, lembrava-se de Bubo Na Tchuto nem António Indjai, mas achou por bem não os mencionar.

Pier de Carvalho dá como o exemplo as "calinadas" que, disse, se cometem na aplicação correcta dos termos em português.

"Na Guiné-Bissau é normal dizer 'arrancar' em vez de 'começar' quando se quer indicar o início de uma coisa", disse o professor, frisando que o termo é utilizado de forma errada.

"'Arrancar' é dar início a uma coisa através de um processo mecânico, como os motores, agora 'começar' é dar início a uma actividade humana", explicou então Pier de Carvalho.

"É este tipo de coisas que também tento ensinar às crianças, para que saibam empregar os termos da linguagem de forma correcta", disse.

Pier de Carvalho é guineense mas serviu a tropa colonial portuguesa como soldado atirador de artilharia e mais tarde foi destacado como professor para o posto escolar militar número 10 na Ponte-Caium, entre Pitche e Burumtuma, no leste da Guiné-Bissau.

De 1972 a 74, Pier de Carvalho ensinou as crianças guineenses e os soldados portugueses "com pouca instrução escolar".

Finda a guerra colonial, Pier de Carvalho ainda trabalhou no Ministério da Educação guineense. Mas com o tempo compreendeu que "não dava" para continuar como funcionário público.

Para ensinar as crianças, Pier de Carvalho decidiu enveredar pelo o ensino privado, montando a sua própria escola. Só que, por falta de meios para alugar uma casa, o velho professor apenas tinha uma escolha: ir para debaixo de uma mangueira.

"Às vezes apanhamos com o sol e com a chuva e somos obrigados a interromper as aulas", contou Pier de Carvalho.

Embora não seja uma escola oficial, o professor Pier dá aulas de explicação às crianças "com paciência e com amor" de segunda a sexta-feira. De manhã e de tarde, os alunos, entre os cinco e 15 anos, saem das explicações e vão para a escola oficial.

A mensalidade variava entre 500 a 1000 francos CFA (cerca de 1,5 euros). Mas, às vezes, acontecem situações em que os pais das crianças não conseguem pagar a mensalidade por falta de dinheiro, sublinhou o professor que, nesses casos, aceita as desculpas que lhe são apresentadas.

"Ensino as crianças por paixão, não por dinheiro", sublinhou Pier de Carvalho.

Nota: CPLP é uma coisa que quer dizer Comunidade de Países de Língua... Portuguesa.

1 comentário:

Amílcar Tavares disse...

Faltou dizer no texto que após o fim da "época colonial", mais de 95% dos guineenses não sabia ler nem escrever e não é com "estabelecimento de ensino" à Pier de Carvalho que o quadro melhora.

Sem defender indivíduos pouco recomendáveis, obviamente, passaram a vida no mato a lutar contra um regime opressor e maléfico, onde aprenderam o "kalashnikovês". Claramente, há atenuantes nesses casos de desconhecimento da "língua de Camões".