«Hoje sento-me aqui para desabafar contigo. No teu leito de morte (e tu sabes como lamento que morras, apesar dos teus quase 140 anos, ou talvez mesmo por todos e cada um deles, e por todas as aventuras e desventuras, por todos os sorrisos e por todas as lágrimas que partilhei contigo), não ousarei mentir-te e dizer-te que nunca te deixaria. Sabes bem que há muito tempo tentava deixar-te.
Tentei debalde despir a camisola daquele amor que nos demos, desde aquele primeiro dia, que já não era o mesmo. Um amor estranho, atraiçoado pelas tuas imperfeições, definhando, mas ainda assim um amor inequívoco.
Terei sido uma das primeiras pessoas a sentir-te o pulso fraco, um prenúncio de morte chegando em cada gesto lento, retorcido, em cada dificuldade nova, em cada suspiro exalado quase com desdém por mim e por todos quantos diariamente tentavam dar-te a mão e ajudar-te a levantar.
Todos os dias, um após o outro, chegávamos com sorrisos, que tu não vias. Queríamos, sem excepção, adivinhar-te novas aventuras, espalhar o teu nome por esse mundo que havia de ser teu, como já era de cada um de nós. Mas tu, às vezes passivo, quase sempre indiferente aos nossos esforços, ias esmorecendo, adoecendo, minando os sonhos de quem te abraçava com esperança.
Hoje, neste leito de morte onde te esvais, onde venho sentar-me para a despedida, já quase em lágrimas enxutas de saudade, digo-te que te amei. Sei que não és um dos grandes. Sei que não és famoso e galardoado. Sei que és pequenino e fraco às vezes. Mas és meu. Um bocadinho meu, pelo menos. Crescemos juntos, eu e tu. Em cada aventura partilhada, em cada momento de luta, em cada gota de cansado e pensativo suor que me escorria pelo rosto. A diferença de idades não nos afastou, antes pelo contrário. Cresci contigo e fiz-te crescer também, ao meu jeito de menina buscando segredos para revelar.
Revelámos alguns em conjunto, e houve pessoas que vieram ter connosco por mim, e outras por ti, pelo teu nome, mais conhecido do que o meu. Bem sei que muitas vezes me zanguei contigo, que quis deixar-te e não voltar a folhear as páginas da nossa história.
Quis esquecer-te, talvez odiar-te, mas não fui capaz. Não sou capaz, mesmo agora, que sei que te vais e levas contigo os meus sonhos mais sonhados, os meus anos mais dourados. Vejo-te morrer a cada dia, e sei que não tenho forças para estancar o teu sofrimento. O nosso, que sofro e sofrem todos os teus amigos contigo.
Somos muitos. Alguns partiram já, mas guardam-te na memória. São, também eles, pedras do teu castelo. Por ti passaram tantos momentos de glória e de desconforto, de raiva e de dor, de medo e de descoberta, de alegria e de amizade. Estão todos guardados num baú mágico de lembranças, onde as boas hão-de sempre dissipar a água turva que cobre as más. Tens amigos que foram e voltaram, outros que nunca te deixaram, como eu.
Há os que falam mal de ti, mas que um dia terão saudades. Eu sei que as terei, se não as tenho já, agora que sei que te vais. Partilhámos sete (apenas sete!) dos teus quase 140 anos. Sei que muitos não acreditarão, mas terei sempre saudades tuas. E hoje, no teu leito de morte, venho desabafar contigo. Para dizer em surdina o adeus que nunca poderei verbalizar. Sempre se disse que terias vida efémera. Muitas vidas, diárias, sucessivas. Mas o adeus, em definitivo, soa ao fim que tantos te vaticinaram, mas que não desejava. Há muito que queria deixar-te, é verdade. Mas não assim…»
In: http://mentedespenteada3.blogspot.com/
Nota: Há muito que também eu te deixei. Mas deixar-te é uma coisa, ver-te ser apunhalado, e ainda por cima pelas costas, é outra.
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