Orlando Castro, jornalista angolano-português, a aproximar-se da casa dos
60 anos – muito novo para se reformar, velho para encontrar emprego –
desempregado e sem ver a “luz ao fundo do túnel” depois de os donos dos
jornalistas e restantes trabalhadores da Controlinveste - Jornal de Notícias
- concluírem que deviam recorrer a despedimentos por quererem mais lucros,
e mais lucros, e menos jornalismo, preferindo escribas como no bom tempo dos
faraós, algo incompatível com Orlando Castro e outros que têm por lema: “O
poder das ideias acima das ideias de poder, porque não se é Jornalista (digo
eu) seis ou sete horas por dia a uns tantos euros por mês, mas sim 24 horas por
dia, mesmo estando (des)empregado”, como não se cansa de fazer constar no seu
blogue Alto Hama.
Radicado no Porto, foi naquela cidade que acolheu com gentileza a
entrevista que apresentamos no Página Global e que talvez contribua para
conhecer mais um pouco sobre este escritor, poeta e jornalista que tem na sua
obra literária títulos como o “Alto Hama”, com Angola em fundo, ou, o mais
recente, “Cabinda – Ontem Protetorado, Hoje Colónia, Amanhã Nação”, que traz
para letra de forma a luta dos cabindas pelo seu país apesar da ocupação da
potência angolana.
Angola que para Orlando Castro é considerada a sua Pátria
igualmente ocupada por um regime ditatorial às ordens de José Eduardo dos
Santos e do MPLA. Regime que quando dá um passo rumo à democracia se
esquece de levantar os pés do chão ou se o fizer tem tendência a recuar,
afirmando em manobras prestidigitadoras que Angola já vive em democracia.
Acérrimo contestatário, Orlando Castro não se cansa de denunciar muitas das
verdades sobre o regime do ditador Eduardo dos Santos – há 32 anos na
presidência da República de Angola sem nunca ter sido eleito. É este
Orlando Castro que aqui trazemos numa dúzia de perguntas e respostas “leves”
mas de conteúdo relevante. Bem haja, Orlando Castro. O PG agradece e profetiza,
com um dedo que adivinha, que a luz ao fundo do túnel sempre esteve lá,
acontece que criaram curvas no túnel que contrariam a luminosidade.
PG - Nascer em Angola, ser miúdo em Angola, andar na escola em Angola,
crescer, fazer rádio e jornalismo talhou um Orlando que não pactua com
subserviências, carreirismos inquestionáveis e outros ismos? Porquê?
OC - Porque, nesses tempos, havia uma sociedade em que os valores eram bem
diferentes dos de hoje. Fazia-se o bem sem olhar a quem, embora diferentes
todos éramos iguais na luta diária pela dignidade. Todos sabíamos que a nossa
liberdade termina onde começava a dos outros. Sabíamos igualmente que a palavra
era sagrada e que não havia lugar para a mentira, a deslealdade, o ódio
pessoal, a ambição mesquinha, a inveja e a incompetência. Ora, quando se nasce
e cresce num ambiente destes o resultado só poderia ser o que é. Apesar disso,
reconheço que muitos dos que nasceram e cresceram nesse ambiente estão em
pontos diametralmente opostos. No meu caso, diria que é um “defeito” de fabrico
que não tem cura.
PG - Temeu que o microfone “mordesse” no Rádio Clube do Huambo, em Angola,
onde se iniciou nas ondas hertezianas? Que prazeres teve que possamos
partilhar? Que recorda daí e que importância teve no caminho que
profissionalmente exerceu no Província de Angola e em outras publicações
angolanas da sua época?
OC - Fui várias vezes “mordido” nessas lides, tanto da rádio como dos
jornais. De qualquer modo, no caso do Rádio Clube do Huambo, gente boa como o
Alexandre Caratão ou o Carlos Sanches também pugnavam por uma máxima que ainda
hoje me acompanha: dizer o que se pensa ser a verdade é o melhor predicado de
um jornalista. Importa dizer que fui “mordido” algumas vezes por gastar todas
as munições a caçar coelhos e depois estar com o carregador vazio quando a onça
aparecia na minha frente. Foram, todavia, “mordedelas” abençoadas porque me
ajudaram a crescer e a enfrentar os obstáculos. Também no jornal “A Província
de Angola”, sob a batuta do José de Almeida e do Carlos Morgado, fui
definitivamente “mordido” pelo primado da competência. E de tal forma o fui que
sou total e completamente alérgico à subserviência. Por alguma razão, andei
mais de um ano a escrever apenas sobre temas de relevante importância, como
eram os buracos das estradas, os candeeiros partidos, os carros mal
estacionados etc.
PG - Tem várias obras literárias editadas e escritas em Portugal mas há uma
que escreveu in extremis em Angola, pouco antes de vir embora para Portugal e
que tem por título Algemas da Minha Traição, muito sugestivo do momento que
então se vivia.
OC - O momento era de facto complicado. Mais do que uma obra literária (se
é que algum dos livros que escrevi pode ser considerado como tal), tratou-se de
uma desesperada tentativa de ter um filho nascido nessa terra que não se define
– sente-se. São poemas, ou melhor, versos que de alguma forma marcam aquela que
poderia ser a última vontade de um condenado à morte. O livro vale o que vale,
mas sobretudo mostra que não há comparação entre o que se perde por não tentar
e o que se perde por fracassar. Posso, por isso, ser acusado de fracasso, mas
nunca de não ter tentado.
PG - O que se sente quando temos de abandonar tudo, Angola, o nosso berço,
África, para mergulhar num Portugal em convulsão, cheio de pessoas cinzentas,
reservadas e convencidas?
OC - Não se sente, morre-se. E embora vivo, não deixo de ser um ser que
nunca se adaptou, nunca foi colonizado por uma sociedade mesquinha e incapaz de
perceber que para mim é impossível viver sem coluna vertebral. Foram muitos, e
hoje voltam a ser, os dias sem pão, árdua a luta para que ao abrir os braços
não tocasse ou em Espanha ou no mar, complicada a missão de ser o que sou e não
o que os outros querem que eu seja. A transplantação da minha árvore foi
complicada, quase como replantar um embondeiro no vaso de uma varanda. Não
morreu mas também não medrou.
PG - Jornalismo, lusofonia, africanidade. Como foi e é sobreviver (ou
viver) sem ter medo das palavras e arcar com as consequências, sendo que é um
comunicador por profissão mas principalmente por dom e excelência?
OC - Jornalismo, lusofonia e africanidade são temas que quando tratados com
a dignidade que merecem são sinónimo de degredo, de clausura, de desemprego, de
mendicidade e de suicídio. Se de uma forma geral a verdade incomoda os donos do
reino, estes são temas que só têm valor do ponto de vista da classe dominante
se alinharem pela cartilha oficial. E essa, como se sabe, aconselha a dar voz a
quem tem todos os amplificadores na mão. No meu caso, como sou alérgico aos que
se julgam donos da verdade, continua a tentar dar voz aos que a não têm. Resultado?
Está bem à vista…
PG - E agora, chegado aos 57 anos, dão-lhe um pontapé no traseiro e
“adeuzinho”, enquanto que aos mais novos aconselham a emigrar. Quem vai cá
ficar neste reino a norte de Marrocos? Os desprovidos de coluna vertebral e
aqueles que para contarem até 20 têm de se descalçar? Não será por isso que
quase tudo está decadente neste rincão português?
OC - Se bem reparar, o reino está a norte de Marrocos mas caminha a alta
velocidade para ficar a sul. Sim. Os sobas lusitanos querem exactamente que os
seus escravos sejam desprovidos de coluna vertebral e analfabetos funcionais.
Eles sabem que uma sociedade erecta e culta é um perigo para eles. Assim sendo,
prometendo um prato de farelo, lá vão criando uma casta menor, também acéfala,
que vê neles uns seres divinos que devem ser venerados. E quando assim é,
quando a barriga – vazia – substitui o cérebro, o melhor será mesmo decretar a
falência, integrar Portugal em Espanha ou, ainda, aceitar ser um protectorado
de um reino bem mais poderoso, como é o caso de Angola.
PG - Ser escritor, poeta, jornalista dos quatro costados desde tenra idade,
ter vivido e continuar a viver (de modo limitado pelo desemprego) uma profissão
intensa em cada uma das 24 horas do dia e que também é a sua razão de respirar
através da palavra e agora ficar impedido de o fazer como sempre o fez
transporta-o para onde? Para que pensamentos? Para que túneis e para que luzes
lá ao fundo?
OC - Estou cada vez mais às escuras. Se há luzes não as vejo. Os
pensamentos, sobre os quais (ainda) não pago impostos, variam entre o suicídio
e o homicídio, não necessariamente por esta ordem. Explico melhor. Quando se
diz a alguém com quase 40 anos de profissão, que é velho para arranjar emprego
e novo para se reformar, está-se a fazer um convite à utilização de medidas
radicais e extremas. Por isso, reconheço que se calhar a minha eventual opção
peca por tardia, penso que puxar o gatilho é como andar de bicicleta. Nunca se
esquece. É claro que, se optar por essa alternativa de levar alguns ximunos à
minha frente, terei de guardar uma última bala para uso pessoal.
PG - Angola-Cabinda. Uma Pátria que na atualidade mantém a injustiça em
território que não lhe pertence tem merecido de si a militância da defesa pelos
que anseiam justiça mesmo sabendo-se menos poderosos debaixo das “patas” que os
sufocam. A luta continua para os cabindas? Será que lhes acontecerá o que
tantas vezes se repete na história? Livram-se de uns opressores e ditadores
para depois voltarem a submergir em circunstâncias idênticas, como aconteceu a
Angola – que se livrou da ditadura imposta pelo colonialismo mas passou para a
ditadura do MPLA e de José Eduardo dos Santos?
OC - É bem provável que os cabindas, na sua mais do que legítima luta,
estejam – ou venham a estar – a pedir ajuda ao leão para combater o mabeco.
Correm, obviamente, esse sério risco de o leão os ajudar comendo o mabeco para
depois, de novo com fome, os comera eles. Creio, contudo, que mais vale ser
livre por um dia do que escravo toda a vida. Os cabindas acreditam que vale a
pena lutar, até porque a ditadura do MPLA e de José Eduardo dos Santos não é,
ao contrário do que eles julgam, eterna. Não lhes faltam exemplos,
sobretudo do que não devem fazer. Terão engenho e arte para isso? Penso que,
mais uma vez, não haverá comparação entre o que se perde por fracassar e o que
se perde por não tentar.
PG - O jornalismo em Portugal é…
OC - Uma profissão em vias de extinção.
PG - E vai ser…
OC - Uma profissão que constituirá uma agradável recordação museológica.
PG - O futuro a Deus pertence. E a si, que futuro lhe pertence?
OC - Apenas o de continuar a manter vivo o poder das ideias sobre as ideias
de poder, preferindo sempre (mesmo de barriga vazia) a força da razão e não a
razão da força… a não ser quando chegar a altura de puxar o gatilho!
PG - Para terminar. Como soaria para si um hino à palavra?
OC - As palavras são só por si um hino, assim os seus utilizadores as
saibam usar com a galhardia de uma poesia, mesmo que em prosa. O que nos faz
falta é um hino à Palavra… de honra. Mas como mesmo essa é apanágio dos
ventríloquos, façamos antes um hino à bicharada.
*Entrevista
conduzida por António Veríssimo
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